Amigos

7 de out. de 2011


Era a flor mais nova da primavera, a única do pomar que havia por ali na esquina - onde era mesmo?. Resplandecia amarela numa noite encalorada de domingo e eu sempre andava alguns passos a mais pra poder vê-la quando saía de casa para qualquer lugar. Fingia errar o caminho, às vezes errava sem querer, às vezes ia sem fingir. Parava e, dia ou outro, me esforçava para cravar-lhe os olhos, mas eles sempre davam um jeito de escapulir do alvo como se fosse o próprio fruto proibido (era só uma flor). Sempre quis ver como seria tomar uma chuva olhando pra ela. Pois é, a natureza deve ter suas razões: a chuva caiu e aquela foi a flor mais breve da primavera, e as mais belas depois povoaram o pomar, mas a minha foi breve.

Guilherme Fontoura.

9 de set. de 2011

Manual para acertar


Olha tudo como na primeira vez
Mas não diz! espera a chance
Joga a isca e recolhe de mansinho
regozija todo o objeto, regozija os olhos


Deve fazer pra refazer
Deve suar e parar
Tomar fôlego e voltar
Deve calejar corpo e mente


Começa com promessa besta
Atinge o íntimo do objeto
Atinge o íntimo de todos
no fim, desmente tudo - sorria, 
                                      que isso é poesia!


Guilherme Fontoura.

6 de ago. de 2011

Bromélia

Você ta sentada de costas
Te vi ontem na noite
você ainda fulgurava
depois de tanto tempo

Agora ta sentada de costas
admirando a paisagem
que te daria ontem
mas hoje não


Guilherme Fontoura.

20 de jun. de 2011

Rima

Entranha louca rima
Que de fato me persegue
E gruda em mim como um imã
Às palavras me vejo entregue

Sem escolha tanta
O vocabulário em minha mente
Com estrofes nasce essa planta
Que um dia foi semente

8 de jun. de 2011

Furto ou plágio

Qual o tema do seu rosto
que nenhuma tinta alcança
que nem poema de bom gosto
crava na ponta da lança
por não se fazer entender
de sagrado ou profano
a vontade de lhe querer
tomar a vida num afano?


Guilherme Fontoura.

31 de mai. de 2011

Náu-sea

Escrevo das minhas entranhas
como quem vomita de súbito
a sopa da semana passada
depois é só copiar as letrinhas

Guilherme Fontoura.

25 de mai. de 2011

Poema para embrulho de Natal

Entre o claro e o escuro
Sempre há um
Espectro


No meio do ruim e do bom
Sempre há
O homem


No meio do silêncio e do som
Sempre há
Esperança


Entre a vida e a morte
Sempre há um
Talvez


Guilherme Fontoura.

3 de mai. de 2011

Cachaça

Poema
     sem rima
         é como um texto
        in verso
     que se lê
  como se toma
cachaça

19 de abr. de 2011

Lúdico

Sou o filho do rei,
mas não o conheço, não o vi
sei onde está mas não passo por ali
Não sei do rei, não sei do rei


Sou filho do rei,
ando por aí...
Sei mais do que deveria
mas não do rei, não sei do rei


Sou filho do homem,
mas não canto aquele hino
sou nobre e sei como assim ser
mas falo como quero, como o que quero


Eu como o que quero
sonho com mais nada, tenho o que quero
sou filho da granada
tenho mais nada, quero tudo 


Meu fardo por um par de tornozelos

12 de abr. de 2011

Porque se fazem claras as coisas do mundo

Era um homem com um cordão amarrado ao tornozelo. Estava passando pela praça de chinelos e um par de olhos mirados para longe, carregando uma pasta grande com displicência – lá estavam várias pessoas. Das muitas que o notaram não houve uma que deixara de formular-lhe teorias comportamentais, psicológicas e até algumas acerca do magnetismo nos olhos do sujeito – haverá quem diga: “não só nos olhos”. Era um homem com uma aliança acima do calcanhar. Deveria representar algum pacto com Deus, como fazem alguns religiosos. Ou com o Diabo – como fazem alguns filósofos e interessados no assunto. Parece que pensava, na vida ou na morte da bezerra, talvez não; e pensava na comida em casa – se tivesse qualquer um dos dois – ou num plano de morte ou suicídio. No cordão, duas miçangas de tamanhos diferentes: a maior e mais disforme era preta (com algumas partes destingidas, como se estivessem raladas, mostrando a bruta madeira), enquanto a mais formosa e pequena era apenas branca e simples. Era notado de cima a baixo. Quando dirigiu sua mão ao rosto, via-se uma pequena ferida na parte inferior esquerda do queixo, onde acabava a barba, do tamanho de uma espinha ou pouco maior, aquele movimento foi como se o sujeito sacasse subitamente do bolso uma arma ou um canivete, e a ferida parecia um crivo que deixava escorrer uma parte do corpo da qual ele não precisava ou rejeitava. Era possível perceber algumas pessoas olhando-o incrédulas, como se não acreditassem no que viam. Era um homem com uma amarra no tornozelo, - a essa altura já haveria subido até o pescoço – e parecia uma marcha em romaria ou um tanque de guerra andando em praça pública – o que já fora normal de se ver, tempos atrás. Ele desfilava escorregando a sola do chinelo no chão suavemente, como se ensinasse tal arte ao mundo. Era um andarilho, um mendigo, um vagabundo, mas parecia estranhamente compenetrado em contemplar o nada, o caos que Deus ainda não desfez. Não olhava pra trás ou para o lado – talvez nem para frente. Ora um gênio, ora um Frank Stein; ora um “gentleman”, ora um pedinte; ora bom, ora ruim; verdade e erro. 
Era uma mulher com uma fita no cabelo. Sentaram e tomaram conversa. Seu sorriso tão natural denunciou sua humanidade singela no momento em que a encontrou, sabe-se lá o que pensariam ainda desse sujeito, mas tinha agora uma tornozeleira.

Guilherme Fontoura.

6 de abr. de 2011

Segundos

A sensação da doença 
se deleitando com o corpo
abre-se uma vala imensa
o peito ao meio, absorto


O descomedimento hilariante
se faz claro de se crer
a inspiração lancinante
que não se pode ver


Guilherme Fontoura.

2 de mar. de 2011

Do inato romance

Você nasceu pra mim
e eu nasci pra você
nesse juri de festim
que usa nossa mercê


não há réu ou delator
escapa à nossa mão
não há quiçá louvor
em aceder a tal prisão


Guilherme Fontoura.

31 de jan. de 2011

Do mundo cravejado de diamantes

Adeus
Oh, eterna desventura,
Epopéia de plebeus
Na cultura da altura


A herança do mundo,
Do sereno perfume
No primeiro segundo
Outros ares assume


Guilherme Fontoura.

11 de jan. de 2011

Chuta Côco

Descendo a ladeira de casa,
seguindo pra lugar qualquer
dois "chuta-côco" sem asa
assoviando para as pessoas


Certas coisas opacas
eram tossidas em coroas
os "chuta-côco" sem asas
catam-nas com uma colher


Guilherme Fontoura.