Amigos

9 de dez. de 2010

A vida tem dessas coisas

 “Quando passei no vestibular, já tinha meus 20 anos de idade e sentia calafrios ao ver a entrada da universidade me chamando como um pai chama um filho que acabara de adotar. Com muita coragem penetrei àquela área tão supostamente conhecida que se tornava mais hostil a cada passo que dava, tranqüilizava-me o fato de ver tanta gente nova e perdida a fim de se mostrar capaz de dialogar com colegas de qualquer espécie. Tudo era como eu imaginava: surpreendente.
Em pouco tempo aprendi a ler e sair pra me divertir. A novidade era uma grande festa e a faculdade um precipício sem fim!
Um dia no restaurante universitário, um rapaz me chamou a atenção. Vestia certo sorriso confiante sobre um rosto cuidadosamente desenhado e cabelos pretos, ao lado de outro sujeito bastante vulgar com seus olhos azuis e nariz pontiagudo. Os dois conversavam como se fossem velhos amigos que há muito não se viam, aquele do nariz pontudo parecia desconfortável. Conversaram pouco e quando ameaçaram se levantar, me direcionei para a saída do restaurante com o intuito de forçar uma aproximação. Saímos nós três do lugar, o rapaz pareceu esnobar enquanto aquele outro vulgar fitou-me desconcertante, tropeçando no meio-fio. Esta carta começa aqui, sem a intenção de ser lida por alguém.
Durante as próximas três semanas o encontrei algumas vezes – certa vez até cruzamos os olhares – e, algumas vezes, também via o outro, sempre motivo de chacotas nas rodas masculinas, gozações que sempre se tornavam um pouco mais agressivas na presença de meninas (homens têm dessas coisas). Era tiro e queda: sempre que o rapaz desfilava seu desjeito com a dificuldade de um alpinista, fazia a diversão daqueles que rondavam pela lanchonete para tomar um café ou nem isso. Mas apesar dessa hostilidade, esse rapaz pareceu um tanto quanto popular entre algumas pessoas, principalmente as menos notadas do sexo feminino e isso deixava os garotos ainda mais dispostos a exibi-lo na sua esquisitice. Já com o outro, o tratamento era o oposto: cheios de gracejos, vivia cercado de amigos e era sempre o centro das atenções quando pegava no violão ou quando contava uma de suas piadas, fazendo sorrir até os mais taciturnos.
Ao passar essas semanas, finalmente conheci o famoso José Carlos e por um bom tempo não dormi direito. Era um feriado de 21 de abril e estávamos numa roda de violão quando ele chegou cumprimentando os amigos e acenando para os desconhecidos, como eu. Em pouco tempo descobri como é possível amar uma pessoa estranha a tudo que se pensa ser necessário para tal, ele continha tudo isso: vulgaridade, imaturidade, – mas não uma imaturidade encantadora como a das crianças, mas como aquela dos animais de zoológico – era também presunçoso e espantosamente bonito; daqueles que não vale uma carta, mas merece uma foto.
De qualquer forma, esta carta não é sobre isto. Esta não é uma carta de amor, nem sobre amor. Esta carta é simplesmente mais uma folha escrita para (passar) parar o tempo, pois isso é possível ser feito, é para isso que serve a saudade e a nostalgia, o retrato e textos como esse. A lembrança nada mais é que aquela porção de tempo guardada em um frasco qualquer no qual se tem um pleno acesso – de acordo com a capacidade mnemônica que cada um, claro – mas de grande risco, não aconselharia alguém a sair “abrindo” todo um passado; e por isso é importante não ser tão bom de memória. Mas como estava dizendo, esta carta tem o intuito de me convencer de que há uma parte considerável da vida que é dominada e traçada apenas pela sorte e por acaso, preciso me convencer disso!
A cada coisa que passa por mim, seja ela o que for, rola-se um dado para determinar toda a vasta gama de ações que posso pensar em fazer, e a partir daí a vida se renova a cada atitude que escolhi ou priorizei em vista de outra à qual não se pode ter acesso; essa - e apenas essa - atitude rejeitada se perde no tempo enquanto a escolhida entra no seleto grupo de ações passadas que se pode ter acesso.
Quanto ao Zeca, resolvi apenas esquecê-lo e depois disso ele veio me procurar algumas vezes, mas eu não conseguia fazer outra coisa, senão esnobá-lo. Aproximei-me do outro garoto, o estranho Moacir. Era um sujeito curioso e feliz, uma felicidade que de certo escondia alguma dor que dificilmente se consegue ocultar de outra forma. Nada simpático e por isso confiava nele, às vezes, a simpatia transparece falsidade e quando se percebe isso fica difícil ser ou conviver com pessoas simplesmente simpáticas. Tinha muitas qualidades e isso me atraiu nele, apesar da sua declarada esquisitice.
Num show grande de faculdade é muito mais fácil se apaixonar, e esse dia ainda guardo num frasco especial, enfeitado com meus melhores lenços de lágrimas. Na verdade eu nem conhecia a banda que tocaria nesse dia, mas diziam que seria um grande show. No momento em que fitei Moacir rapidamente senti um arrepio leve, foi quando – acredito – me apaixonei, o amor é muito mais interessante quando chega em poucos segundos e corrói sua inteligência deliciosamente. Nesse dia eu amei Moacir, e depois desse dia nunca mais o vi. Moacir havia se transferido para outra faculdade na capital alguns dias depois, e eu fiquei por aqui mesmo, estou aqui até hoje, apesar de ter me sentido como se não estivesse nos primeiros dias. A vida tem dessas coisas...”


Esta é uma carta que encontrei agora, meio rasgada, mas reescrevi para guardá-la, assim mesmo sem autoria, sem remetente e sem data. Procurei reconstruir algumas palavras que se perderam tentando manter o máximo de coesão. Imagino que a autora teria concordado com a idéia.

Guilherme Fontoura.

O beijo e o asco

"Quando a morte o beijar,
o mesmo beijo piedoso de Judas,
brindarás à eterna desventura!
Te trará jovem para uma forma,
- branco e jovem como nunca o fora -
pousará teu retrato nas cortinas
sendo sempre visto
com os olhos perenes que temos.
Quanto a ti, me alivia dizer,
viverás até que o mundo definhe!
Serás companhia para as pedras,
só por não poder ver,
e depois,
ainda viverá!"


Guilherme Fontoura.

7 de dez. de 2010

Os Dias

Moisés um dia fugiu de casa.
Era um mês difícil, talvez um ano inteiro. Faltavam dois semestres para terminar a faculdade, mais precisamente 520 dias. Estava vivendo uma fase de “inhaca”, como dizem por aqui, há mais de três meses e não sabia se queria se mandar de vez da universidade - ou até da cidade - ou se sentar e tomar um café com rosquinhas da mãe.
Acordava cedo para esperar o momento de preparação para enfrentar a biblioteca e a sala de aula, que ia das 10 às 13 horas, e esperava muito feliz, como se fosse o melhor momento do dia - e muitas vezes, realmente era - onde ele não fazia nada e demorava a cogitar pensar em algo, até porque depois disso seu dia estava arruinado: ele alternava horas de estudos mal feitos e momentos em que saía da sala torcendo para encontrar algum conhecido para chamar de amigo e fugir dos livros e professores carrancudos. Não era de muitos amigos, e os poucos que tinham não faziam muito o “tipo” dele. Moisés gostava de xadrez e não costumava sair para festas, apesar de apreciar uma boa dose de vinho ou de Martini. Na faculdade não costumava conversar com ninguém, exceto alguns funcionários da biblioteca e da lanchonete, mas de resto preferia ficar sozinho a ter que lutar em mais um diálogo que mais parecia uma batalha de egos e saberes. Tinha na cabeça que só encontraria amigos de verdade longe da faculdade, sem a obrigação da convivência acadêmica ou com a falsidade alheia para evitar certos problemas, era muita diplomacia e Moisés nunca se interessou por política.
Ontem, pego por uma agonia de madrugada, saiu para comer alguma coisa sozinho, num bar que ficava perto de casa. No bar não tinha nenhum conhecido e por isso ficou e pediu uma dose de cachaça para ver se chega o sono e deixa de escrever devaneios e cartas românticas para si mesmo, isso o deixou mais calmo. Voltou para casa pronto para agüentar mais um ano, se preciso fosse, naquele lugar (que nem eu, nem ele saberíamos dizer se seria a faculdade ou a própria casa), dormiu como se fosse uma criança exausta, sem pensar no que teria que fazer no dia seguinte.
Faz seis horas que Moisés fugiu de casa e sua voz ainda ecoa nas paredes do seu quarto, seu guarda roupa ainda guarda suas vestes e algumas outras coisas que ele sempre escondia com muito cuidado em algumas gavetas, debaixo das bermudas. Há alguns meses atrás - estou quase certo - ele começou a juntar dinheiro para alguma coisa, imaginei que pretendesse viajar ou comprar um novo vídeo-game, por isso não esperava a fuga. Não saberia dizer se Moisés era realmente infeliz ou se queria o mundo quando não possuía consciência nem de si mesmo, mas acredito que não seja nada disso, talvez seja apenas a idade, nessa época todos têm que fugir de alguma coisa.
Moisés fugiu de casa e levou apenas a roupa do corpo e um guarda-chuva.


Guilherme Fontoura.

3 de dez. de 2010

O Cão do Subjetivismo

Do meu lado há uma maçã comida
eu canto alto para o mundo
e o mundo? nada...
quem você pensa que é?

Guilherme Fontoura.

1 de dez. de 2010

Criação

Deus fez os homens
de pau e cera,
como lhe convém
O mundo, fixou numa esteira
- equilibrou e tirou a mão


Deu no que deu,
no que Deus nos deu:
pau e cera


Guilherme Fontoura.

Ficções

Eu fitava sem receio de longe
você aquém 
como numa mesa de bar
trocávamos até os olhares
sorriam até para mim
despertei por tua pressa dormi
por tua causa.


Guilherme Fontoura.